segunda-feira, 9 de maio de 2011

Europa (1991)

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Europa de Lars Von Trier vencedor do Prémio do Júri do Festival de Cannes decorre numa Alemanha que se encontra no período imediato à Segunda Guerra Mundial ainda ocupada tanto pelas tropas norte-americanas como pelos fantasmas de um nazismo ainda não desaparecido com o final do conflito.
Leopold Kessler (Jean-Marc Barr) é um jovem pacifista e idealista norte-americano de origem alemã que no pós-guerra decide ir para a Alemanha e ajudar na recuperação do país. É quando Leopold começa a trabalhar para os caminhos-de-ferro alemães que se iniciam uma série de ocasionais encontros - ou talvez não - com um conjunto de personagens tão sinistras quanto o clima ali vivido e que o tentam seduzir para a concretização de alguns favores.
Leopold vive então um conflito com as suas convicções pacifistas e de não-ingerência, um inesperado amor com Katharina Hartmann (Barbara Sukowa) e uma diferente - mas não menos intensa - realidade pós-guerra num país que esconde ainda velhos demónios que não foram purgados.
Como em todos os filmes de Lars Von Trier também este parece ambientado num universo muito particular distante de uma realidade dita convencional revelando, uma vez mais, todo um conjunto de personagens que tentam usufruir de uma inesperada "fonte" de benefícios que é explorada e violentada pelas suas necessidades. Se nas obras mais tardias de Von Trier essa "fonte" é habitualmente interpretada por uma figura feminina central, em Europa a mesma fica a cargo de um intenso, e frequentemente emotivo, Jean-Marc Barr.
Jean-Marc Barr que com o seu "Leopold" domina toda a intensidade dramática desta história revelando-se inicialmente como um idealista disposto a ajudar uma parte do mundo onde não só tem as suas raízes como também está despojada de toda a normalidade pelo conflito pelo qual atravessou terminando como um homem movido pelo impulso oriundo de um sentimento até então não sentido. Se em Breaking the Waves (1996) temos uma Emily Watson dependente de um desejo mórbido do seu marido que comanda portanto o seu destino, se em Dancer in the Dark (2000) temos uma Bjork dependente de uma sociedade que ignora as suas necessidades físicas ou em Dogville (2003) uma Nicole Kidman presa aos maus tratos de uma sociedade que a priva de liberdade em troca de silêncio ou até mesmo em Antichrist (2009) uma Charlotte Gainsbourg refém de um passado pelo qual se responsabiliza, em Europa Jean-Marc Barr é moral e psicologicamente abusado por aqueles que vêem nele o idealista perdido com o início da guerra anos antes. Se ele quiser sobreviver naquela sociedade corrupta e corrompida que martirizou os seus em nome de uma conquista desenfreada, então terá de pagar pela tal "reconstrução" livrando-se dos males que uma antiga Alemanha ainda insiste em identificar.
Mas o argumento de Von Trier e Niels Vorsel vai mais longe do colocar no centro da trama não a guerra ou as suas consequências nefastas para o país e para a comunidade em jogo mas sim transformando o idealismo e a já referida não-ingerências nos tópicos principais desta história que para lá da destruição física da sociedade revela a sua incansável corrupção moral. No fundo, Europa reflecte não sobre os dois lados da barricada - nazis versus os que lutaram pela liberdade - mas sim sobre todos aqueles que se mantiveram em silêncio enquanto tudo desabava. Quais as suas convicções quando parecem nada ter defendido? Quem foram eles quando os dois lados se debatiam pela vitória? E, no fundo, quem foram eles quando o regime nazi tão silenciosamente escondeu os campos de extermínio onde - perto de um deles - "Leopold" e "Katharina" passam a primeira das suas noites enquanto casal... mas também os seus vestígios escondidos sobre a sombra da noite e de uma janela que é convenientemente tapada.
Assim, em Europa é a não-ingerência de "Leopold" que é, desde o primeiro instante, ameaçada. Se o jovem atravessou os anos do conflito nos Estados Unidos longe de todo o belicismo que a Europa vivia ignorando ambos lados com a mesma veemência, é também certo que chega a esta Alemanha do pós-guerra ignorando as reais condições de um país agora ocupado pelas forças Aliadas que tudo e todos controlavam. "Leopold" procura apenas um trabalho no qual sinta ajudar à reconstrução do país... encontra-o - na sua perspectiva - enquanto revisor numa carruagem que viaja pelo país sempre de janelas fechadas ignorando o que se passa "lá fora". Escondido - e escondendo-se - da realidade que atravessa sem conhecer, "Leopold" vai lentamente testemunhando a sobrevivência de um país através das poucas - e nem sempre sérias - amizades que estabelece envolvendo-se naquilo que considera ser melhor para os ajudar e, dessa forma, interferindo na realidade do país do qual, anteriormente, se havia mantido afastado. De jovem idealista a involuntariamente fervoroso defensor de uma nova ordem - talvez não política mas sim moral - "Leopold" é agora parte integrante desta sociedade para cuja reconstrução contribui guiado mais pelos seus sentimentos do que propriamente por um qualquer tipo de convicções sociais, políticas ou até mesmo ideológicas.
Este retrato de uma Europa - mais concretamente Alemanha - sombria e onde ainda residiam os fantasmas de um nazismo agora ocultado, revelam ao espectador um território sombrio, destruído e onde imperam agora as vinganças pessoais, as tentativas de instaurar pequenos "estados" soberanos como que heranças do nazismo que se tentava oficialmente combater, um país onde se tentam purgar os colaboracionistas mas, ao mesmo tempo, eliminar o sangue novo que chega para levar o país a um novo rumo. Europa - filme e continente - é um antro de vinganças pessoais, de jogos de interesses que o espectador acompanha - tal como o protagonista - de forma hipnótica - magnífica interpretação oral de Max Sydow que sem nunca surgir no ecrã tem uma das mais emblemáticas interpretações do mesmo - deixando-se levar quase inerte pois o próprio não se pode descolar deste ritmo de involuntária participação onde reina a intolerância e a ideologia de que o "outro" é - ainda - a causa e consequência de um mal maior que "me" afecta. Mudam-se os tempos, mudam-se os governantes mas subsiste de forma silenciosa a origem de um mal que se combateu e queria ver eliminado... que o digam alguns dos passageiros daquele comboio que todos serviu... passageiros entre cidade... detidos entre campos de concentração e agora turistas que regressam ao país de onde anos antes haviam saído... E mesmo aqueles que viajam nas suas carruagens escondidas, ainda breves memórias das pessoas que foram ainda fardados com a infâmia de que foram vítimas - Von Trier cria este silencioso segmento em que o passageiro se sente num comboio rumo a um qualquer campo de concentração ao observar aqueles que "no momento" de um haviam saído.
Europa vive ainda de uma magnífica interpretação de Jean-Marc Barr como o jovem idealista que rapidamente e contra sua vontade se transforma num colaboracionista corrompido (pelo coração) e pala comunidade em que se move concretizando um conjunto de acções que o colocam no centro de uma trama interna tal como um peão num tabuleiro de xadrez. Durante o conflito o seu "Leopold" haviam escapado ao conflito... agora ele é peça fundamental no mesmo, nele envolvido para salvar aqueles de e a quem agora se sente pertencer.
Com uma magnífica direcção de fotografia da autoria de Henning Bendtsen, Edward Klosinsky e Jean-Paul Meurisse que captam a essência e a alma de uma Europa sombria e devastada, Von Trier e Vorsel criam então este argumento, tão pertinente nos dias que hoje atravessamos onde as desconfianças, os movimentos extremistas e a divisão entre o "eu" e o "outro" parecem ganhar, uma vez mais, toda uma legião de seguidores divisionistas e sérias afrontas a uma paz sempre instável recordando-nos com consistência a ténue linha que separa o passado e o presente e revelando como a História tende - assustadoramente - a poder repetir-se num mundo onde aparenta já não existir lugar para os sonhares e idealistas que se conformam num silêncio constante enquanto todo o mundo "lá fora" parece querer desabar.
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8 / 10
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