sábado, 14 de outubro de 2017

Fátima (2017)

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Fátima de João Canijo é uma longa-metragem portuguesa que junta um conjunto de onze actrizes numa peregrinação religiosa desde Vinhais em Bragança até Fátima.
Fátima (Cleia Almeida), Nanda (Vera Barreto), Ana Maria (Rita Blanco), Amparo (Ana Bustorff), Nazaré (Íris Macedo), Isabel (Teresa Madruga), Céu (Anabela Moreira), Rosário (Alexandra Rosa) e São (Teresa Tavares) vão em peregrinação a Fátima. Acompanhadas por Isaura (Márcia Breia) e Carla (Sara Norte) que lhes providenciam as condições mais básicas para a sua viagem, as nove mulheres fazem-se à estrada numa viagem de mais de quatrocentos quilómetros por percorrer até chegarem à cidade santa.
Canijo, que também é autor do argumento - deste documentário ficcionado... ou ficção documental? -, recorre uma vez mais a dois dos mais emblemáticos rostos do seu cinema - Blanco e Moreira - nesta história sobre devoção, martírio e conhecimento pessoal que o espectador acompanha ao ritmo de algum drama, humor, incerteza e até mesmo alguma violência psicológica que os vários momentos desta viagem proporcionam às suas personagens tendo quase sempre como foco principal a "Céu" de Moreira.
Numa viagem tida com a necessidade de algum rigor e tradição, forma-se um inesperado grupo de mulheres da mesma vila que decide "pagar" a sua promessa respeitando os favores divinos prestados pela Nossa Senhora. A crença e a fé tomam o lugar e todos os momentos deste grupo de mulheres - peregrinas e acompanhantes - são delineados com aquilo que o lugar comum de anos passados determina como correcto. Não há espaço para incertezas, para atalhos ou tão pouco para os escassos espíritos livres que inesperadamente tomam o lugar central desta longa caminhada onde para lá da fé, que nunca é questionada, são os propósitos e a devoção de cada uma delas que são colocadas a teste não pelo espírito divino mas sim pelas demais que insistem que ali só existe um rumo... aquele da continuidade.
Os propósitos destas mulheres não chegam a ser conhecidos na sua totalidade, afinal as promessas a pagar e o agradecimento ao divino apenas a cada uma delas diz respeito como um pacto silencioso que havia sido estabelecido com o espírito sagrado e não para ser partilhado com aquelas outras mulheres que, como manda o bom espírito católico, delas faz pecadoras arrependidas e sujeitas ao perdão divino. Não, ali conhecemos apenas as mulheres que tomaram a estrada para fazer o seu percurso sujeitando-se às maleitas físicas de uma viagem que será psicologicamente desgastante para elas que convivem com a diferença pessoal de cada uma delas e para o espectador que cria empatia ou repúdio por alguns dos comportamentos ali manifestados.
As dinâmicas de grupo estabelecidas parecem respeitar apenas uma das peregrinas... A "Ana Maria" de Rita Blanco que para lá de dinamizar o grupo se torna como uma líder nem sempre silenciosa que testa os comportamentos das demais ou até mesmo as condena pela diferença que algumas trazem ao grupo. O espectador entende-a como aquela que já faz este percurso há mais tempo, independentemente de não conhecer os seus motivos, mas vê nela uma mulher de fé, que persistentemente "paga" a sua promessa que entendemos ter sido grande e que, ligada a um forte sentido tradicional, espera e insiste no respeito, na tradição e mesmo na penitência... afinal, naquele percurso sagrado não há lugar para música, conversas despropositadas ou até mesmo um qualquer desafio ao seu mando... que é quase uma lei. Do outro lado encontramos a "Céu" de Anabela Moreira, silenciosamente - não sempre - rebelde e um espírito livre - para os bons costumes - que insiste (não assumidamente) que o percurso pertence a cada uma delas e que apenas o devem àquela por quem inicialmente se puseram a caminho... à Nossa Senhora. As tensões de grupo chegam quando estas duas mulheres começam a colidir uma com a outra colocando o demais grupo numa situação de não ingerência ou então aliadas à veterana "Ana Maria".
São estas dinâmicas que são essencialmente exploradas nesta história e que levam o espectador a observar não tanto o caminho geográfico que elas efectuam mas sim aquele psicológico e de fé que as leva a dar um passo atrás do outro rumo a Fátima onde poderão finalmente agradecer pelo bem que lhes foi feito. Neste sentido, enquanto as observamos nas suas conversas cada vez mais mordazes e, até mesmo condenatórias, face a uma "Céu" silenciosa nos seus motivos e que desafia a própria autoridade de "Ana Maria" ou de uma "Isaura" (Breia) matriarca de um grupo que pela força da sua idade quer impôr um "correcto" a um grupo que se distancia pelas suas histórias pessoais, o espectador acompanha as pequenas nuances e detalhes que são conferidas a cada uma destas mulheres cujas histórias são pontualmente abordadas - por vezes ao mesmo tempo -, possibilitando-o de escolher sobre qual quer realmente saber mais um pouco. Afinal, não são dinâmicas também as conversas de qualquer um de nós em grupo?!
A insatisfação para e com a diferença e mesmo direccionada face àquela(s) que decide(m) levar o seu próprio rumo atinge o seu clímax quando são inseridos elementos estranhos ao grupo - a única presença masculina do mesmo - fazendo-as questionar sobre os propósitos de uma "Céu" que agora tratam com desdém e que assumidamente não irá estar para ser tratada como o elemento indesejado de um grupo demasiadamente concentrado numa fé e num respeito que, essencialmente, não conferem a uma das suas. Afinal, depois de escutarmos as insinuações de grupo e até mesmo os comportamentos violentos que acabam por ter face à personagem interpretada por Moreira, até que ponto estará de facto a fé destas mulheres a "funcionar" da melhor forma? Onde está o seu espírito fraterno ou, em última análise, que vão elas pagar com a sua peregrinação quando, na realidade, demonstram um espírito tão pouco solidário e cristão?!
No entanto, é nos últimos instantes desta Fátima que o espectador compreende finalmente o espírito da missão... que compreende o remorso... que compreende que todos os pequenos grandes obstáculos que atravessaram estão, afinal, para trás. Todas chegaram àquele espaço santificado convictas das suas acções, capazes de perdoar o imperdoável e sentir que talvez através do seu sacrifício poderão os seus problemas ficar resolvidos. A devoção de todas é então compreendida pelo espectador como o resultado de uma manifestação individual e de um percurso que, ainda que tido em comum, é o resultado de toda uma experiência de crescimento individual resultante de uma história de vida... de uma equação que não é comum a nenhuma delas e capaz de transformar o breve segmento final onde se confirma o reencontro num momento emocionalmente desarmante tal a magia e o misticismo capaz de ser captado pela câmara de Canijo numa multidão de pessoas que, todas elas, partilham uma experiências cujas variáveis são (foram) infinitas.
Se Rita Blanco é uma força da natureza - não há expressão melhor para caracterizar esta brilhante actriz - aqui capaz de sair do registo mais familiar que o espectador conhece e que, eventualmente pela força da experiência e da vida da sua "Ana Maria", se transforma numa mulher que mantém a força e o espírito do grupo por vezes à custa do suposto ela mais fraco... é este, na personagem de Anabela Moreira que se destaca por aquele que é, eventualmente, o propósito mais trágico e sofrido num percurso que é essencialmente levado em silêncio e de rosto fixado na estrada que corre como que uma continuação da sua penitência. Mas esta longa-metragem está repleta de intensas interpretações como a sofrida de Teresa Tavares cujo propósito apenas conhecemos já bem perto do final, a versão mais jovem de uma "Ana Maria" na pessoa de Cleia Almeida para quem o costume tem de ser uma lei não escrita ou mesmo a "matriarca" de Márcia Breia que - provas não necessitadas - confirma uma vez mais que todas as suas personagens são dotadas de uma força interior que apenas ela é capaz de domar... concordemos ou não com os seus propósitos gerais... mas o espectador vibra com cada um dos seus breves, corrosivos e mordazes comentários que não levantam o espírito mas o condenam a uma nova sentença por ela atribuída.
Pontualmente pertinente sobre o estudo das dinâmicas de grupo mas essencialmente um intenso registo sobre a construção de personagens às quais estas brilhantes onze actrizes souberam dar uma alma - ainda que o espectador não concorde ou se coloque ao lado de todas elas -, Fátima é sobretudo um filme sobre as histórias pessoais que os vários silêncios contam. Sobre a forma como facilmente avaliamos ou julgamos o "outro" - especialmente no percurso que aqui é estabelecido e proposto - esquecendo que também ele pode ter um propósito maior tão ou mais digno que aquele que julgamos cumprir mas também um filme que analisa de forma breve, mas impactante, o poder do perdão.
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7 / 10
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