quarta-feira, 4 de abril de 2018

Sicilian Ghost Story (2017)

.
O Fantasma da Sicília de Fabio Grassadonia e Antonio Piazza é uma longa-metragem italiana que abriu a décima-primeira edição da Festa do Cinema Italiano a decorrer em Lisboa até ao próximo dia 12 de Abril no Cinema São Jorge, em Lisboa.
Numa pequena localidade siciliana o jovem Giuseppe (Gaetano Fernandez) de treze anos desaparece. Luna (Julia Jedlikowska), uma colega de escola e sua apaixonada recusa aceitar o estranho silêncio que está em torno deste misterioso desaparecimento. Nunca se resignando com a situação e vivendo o desespero de um primeiro amor desaparecido, Luna deixa-se embrenhar numa aura de conto assombrado que a levará às profundezas da sua alma e da Sicília profunda onde nem tudo é como aparenta.
A dupla Grassadonia e Piazza que também escreveu o argumento deste filme a partir da obra de Marco Mancassola, cria uma história que une inúmeros elementos numa única obra... Do conto fantástico à obra de clássica sem esquecer a caracterização do meio e um relato da vida da ilha mediterrânica e até mesmo aquele de um romance anunciado, Sicilian Ghost Story é uma surpreendente história que cativa o espectador não só pela incerteza do seu desfecho como também pela própria capacidade de misturar géneros e pequenos elementos que o fazem supôr estar perante uma obra mística e, ao mesmo tempo, assombrosa.
Tudo começa com a imagem de uma vida aparentemente banal de duas crianças que, na pré-adolescência, descobrem o primeiro amor romântico muito ao estilo de um Romeu e Julieta shakespearianos incluindo a própria disputa familiar. No entanto, aqui não temos nem Montesquio's nem Capuletto's mas sim o panorama de uma Sicília adormecida pelas investidas da Mafia que cobra as suas dívidas quer seja com dinheiro ou até mesmo com as vidas humanas daqueles que interferem no seu caminho. Ao estilo de fábula mitológica - onde os animais têm toda uma muito própria simbologia -, Sicilian Ghost Story não se esquece de pequenos elementos dos contos Grimm entregando toda a dinâmica desta narrativa a espaços exímios como uma gruta (aqui "encorpadas" pela cave da casa de "Luna" como também pelo casebre em que "Giuseppe" está detido) e também à floresta, elemento fulcral das histórias dos irmãos germânicos e aqui centro de toda um conto que não cabe apenas à imaginação de um qualquer contador de histórias. A floresta, ponto de encontro entre os dois jovens, centro do seu desaparecimento e de igual rendição da jovem "Luna" que nela encontra não só a forma de expiar os seus pensamentos como também de forma primordial de voltar a encontrar o seu amor, acaba por se transformar num terceiro elemento "vivo" de uma história que anuncia um fim indesejado. A floresta é, aliás, o habitat que irá "prender" o jovem assim como aquele em que inicialmente o espectador compreende que ambos estão a ser observados e no qual encontram o seu primeiro "lobo" na imagem de um perigoso cão que, mais tarde na acção, irá revelar não tê-los encontrado... por acaso.
Mais, os dois jovens que experimentam por um breve período um amor que parece não ser desejado pela comunidade familiar, encontram nos mesmos os seus mais fortes opositores (na mãe de "Luna" e no pai de "Giuseppe"), que preferem proibir a relação, negar os acontecimentos e ocultar as falhas e as ausências em nome de uma tranquilidade que não só não vivem como toda a comunidade sente involuntariamente ameaçada quando se percebe (no silêncio) que tudo pode voltar a acontecer... a qualquer um. Mas, como todos os amores proibidos, também o de "Luna" e de "Giuseppe" irá resistir contra as adversidades e mesmo não tendo o final esperado - para o espectador -, existe sempre a certeza de que perdura algo na sua memória (e daqueles que lhe sobrevivem) a certeza de que o seu mundo, ou a imagem de que dele tinham, irá ser radicalmente diferente do que aquela tida antes do seu universo ser danificado.
Sem nunca revelar nada dos seus pequenos mundos - conto, mitologia, realidade e mesmo romance - Sicilian Ghost Story consegue cativar pela mescla destes ambientes e a dupla Grassadonia e Piazza nunca declaram abertamente qual o estilo em que esta se pretende inserir deixando ao espectador a liberdade de se identificar com esta história através de qualquer uma destas realidades. Existirão aqueles que olham para esta história como uma história de amor não cumprido (tal como a já referida obra de Shakespeare), outros que a irão acompanhar como um relato escondido de uma realidade siciliana aqui vivida pela experiência de duas crianças que, no fundo, chegam à idade adulta cedo demais (ou talvez não), e outros ainda que se irão concentrar na simbologia, mitologia e dinâmica de conto popular presente ao longo deste conto moderno.
Sicilian Ghost Story é assim uma experiência vivida de diversas formas independentes apenas adequadas à realidade de cada um dos seus espectadores. No entanto, a realidade escondida por detrás de todas estas vertentes é apenas uma... a história de uma perda onde todos os intervenientes são vítimas de uma vida colhida por uma realidade criminal longe de ser extinta... A histórias de dois jovens que não podem ver o seu primeiro amor cumprido, de pais incapazes de amar uma filha e de outros que não podem chorar e fazer o luto dos seus abertamente sem esquecer que o suposto lado "correcto" da lei está, também ele, preso a dilemas e dicotomias de poder que os impedem de fazer o tal braço da lei agir em conformidade com as situações mantendo-se, de uma forma geral, como um mero fantoche de uma realidade que os ultrapassa. Mas, se todos estes elementos cativam o espectador que olha para esta longa-metragem como um objecto artístico diferente do normal - na medida em que todos estes elementos não estão, regra geral, uniformizados numa única história -, é toda a sua vertente mística que acaba por prevalecer. De um lado temos todo o ambiente negro dessa suposta passagem para a adolescência incorporada por um elemento natural (a floresta), que poderia representar o seu amor proibido (pela forma como se apresenta assustadora) mas, no entanto, cedo o espectador irá perceber que este é um símbolo sim, mas da interrupção desse amor (realidade) na medida em que toda a sua convivência está a ser observada e ameaçada por elementos exteriores e muito maiores do que aquilo que eles poderiam suspeitar. Assim, é toda esta atmosfera natural, na qual se inserem os próprios animais... o cão como um lobo predador ou mocho como o símbolo de uma revelação intelectual superior..., que se destaca em Sicilian Ghost Story... uma história siciliana (de facto) onde os fantasmas são representados pelos medos, pelas incertezas e pelos silêncios que perduram e persistem nas vidas de uma comunidade que não ousa passar para lá de um limite que lhes fora imposto mantendo-se subserviente a uma realidade que está instalada e da qual se ousa obter uma liberdade apenas em pensamento... e mesmo esse, pode trazer os seus riscos.
Com uma fenomenal direcção de fotografia de Luca Bigazzi - nomeada ao David da Academia Italiana de Cinema -, Sicilian Ghost Story poderá facilmente ser o mais bem sucedido representante de conto gótico moderno que se afirma pelas suas sombras, inuendos e contornos agrestes ilustrativos de uma sociedade (e comunidade) fechada sobre si próprio e ausente dessa tal liberdade que perspectiva outros mundos e realidades mas que, pelo poder de uma imaginação, e aqui do amor de duas crianças, pode encontrar essa forma de escapar conferindo-lhes, ainda que timidamente, uma esperança que poucos ousam alcançar.
.

.
8 / 10
.
.

Sem comentários:

Enviar um comentário